Experiência Literária #3: Corpos Secos — L. Geisler, M. Ferroni, N. B. Polesso e S. M. de Machado

Gabriel Yared
4 min readSep 24, 2020

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Em destaque, está o livro Corpos Secos, com a capa vermelha revelando árvores sem folhas e de aspecto ameaçador.
Livro Corpos Secos, de L. Geisler, M. Ferroni, N. B. Polesso e S. M. de Machado. Alfaguara, 2020.

Ficha técnica
Autores: Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado
Edição: Alfaguara, 2020.
Número de páginas: 189
Tempo de leitura: 13/09 a 17/09/2020
Minha avaliação: 5/5

Como falar sobre o tiro que foi ler Corpos Secos? Decerto, posso afirmar que é um projeto ambicioso. Lançado este ano, o romance surgiu da junção das ideias de quatro autores. Cada um deles nos apresenta um núcleo narrativo num Brasil devastado por uma epidemia causada por agrotóxicos, que transformaram grande parte da população em corpos secos. Os sobreviventes têm como objetivo chegar ao Sul do país, onde há rumores de ainda existir um governo centralizado em um local seguro.

O primeiro dos sobreviventes apresentado é Mateus, um rapaz imune ao vírus que é estudado por uma equipe de médicos num hospital de São Paulo. Mateus tem um relacionamento com Romero, um dos policiais federais encarregados de protegê-lo. Quando um misterioso carro de som cuja gravação de teor bíblico apocalíptico menciona o nome de Mateus e de outros integrantes de seu grupo de sobreviventes parece controlar os corpos secos em direção ao hospital, ameaçando a segurança da equipe, eles são obrigados a seguir para o Sul. Mateus carrega nas costas, além de uma mochila cheia de chocolate Bis branco, o peso das vidas que o escoltam e a pressão de ser uma esperança para o futuro do tratamento à doença.

Em seguida, somos apresentados a Murilo, irmão mais novo de Mateus. Murilo representa um dos pontos de vista mais interessantes da obra, através de uma linguagem que representa as percepções de uma criança em meio ao caos dos mortos-vivos. Murilo vê sua família lutar pela sobrevivência, saindo da vila militar em que vivem, onde parece ter estourado o primeiro surto da epidemia; sua mãe faz de tudo para que ele seja poupado das partes mais grotescas do fim do mundo, mas é inevitável. É de apertar o peito perceber o quanto o menino tem de amadurecer em um curto período de tempo e como sua sanidade é representada pela companhia de Baleia, um peixinho que leva num Tupperware. Ser criança, muitas vezes, é o fator decisivo para que Murilo permaneça vivo, com suas observações perspicazes sobre os adultos, a família e o fim do mundo.

O terceiro ponto de vista é o de Regina, uma dona de casa, esposa de um fazendeiro do Centro-Oeste. Com a morte do marido, ela se vê obrigada a deixar sua casa para trás, levada por um dos funcionários da fazenda. No entanto, ela descobre que a crueldade humana, a crueldade dos homens para com as mulheres, pode ser bem mais brutal do que corpos devoradores de carne. Numa situação de abuso, Regina é obrigada a despertar o que há de mais forte e insensível dentro de si para sobreviver.

O último ponto de vista alterna entre Constância e Conrado, irmãos gêmeos que viajam pelo litoral sudestino em direção aos pontos de triagem para um local seguro. No meio do caminho, eles encontram outros sobreviventes, que os fazem refletir sobre o que é família e sobre como é impossível estar seguro, mesmo com pessoas a seu redor. Também considero esse ponto de vista um dos mais fortes pelo contraste entre as duas personagens, de personalidades bem definidas que, apesar das diferenças, sentem-se melhor em meio ao caos se estiverem unidas.

Apesar de ser possível notar as diferenças estilística e narrativas entre os quatro autores, que transitam entre a terceira e a primeira pessoa, a coesão do romance foi muito bem trabalhada, de forma que a diversidade apenas contribui para a construção dos diferentes pontos de vista abordados, tornando mais reais as personagens em suas particularidades. É possível perceber, em cada uma, quais são suas principais dificuldades, desejos e até mesmo seus hobbies, o que lhes dão diversas dimensões e camadas, além de verdadeira representatividade, que as aproxima do público.

Um dos pontos altos da narrativa são as passagens de ação de tirar o fôlego, a atmosfera de terror e tensão que me proporcionaram grande aflição e até nojo, mas sem exagero, de forma que me senti preso à história, terminando-a em poucas horas no total. São momentos de calmaria com um ponto de virada surpreendente, tanto que tive de reler algumas cenas para poder compreender a grandeza frenética delas. Foram também nesses momentos que algumas lágrimas, de agonia, de tristeza e de raiva, escaparam de meus olhos. A incerteza é o motor da obra, presente até mesmo na imagem que se tem de um lugar seguro. Será que pode mesmo existir, quando todo o resto do país está destruído? E mesmo depois de terminar a leitura, um monte de dúvidas apontadas na obra permaneceram — permanecem — em reflexão.

Outro aspecto que me agradou bastante na obra foram as críticas sociais que permeiam toda a narrativa, desde o campo familiar, econômico e político do momento em que vivemos. Através das personagens, é possível perceber a insatisfação dos autores em relação às políticas do governo atual, com foco no crescimento do agronegócio a despeito da preservação ambiental e dos impactos que essa irresponsabilidade pode causar. O principal disso tudo é a percepção de que é a população que deveria ser representada por esses governantes que sofre os impactos negativos, enquanto uma pequena elite se beneficia da situação precária.

O mais perturbador nisso tudo é perceber como, no momento de maior crise sanitária dos últimos tempos, as medidas do governo para a resolução do problema é bastante similar ao representado no livro, escrito anteriormente à pandemia do novo coronavírus. Como em nossa realidade, o latifundiário lucra com o abatimento da boiada.

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Gabriel Yared

Jovem escritor, leitor e resenhista, amante da ficção. Tento apresentar, através de minhas palavras, o que vejo em conjunto ao que simulo em devaneios e sonhos.