Jogos Vorazes e os governos totalitários do século XX

Gabriel Yared
8 min readSep 9, 2020

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Ensaio produzido em coautoria por Gabriel Nunes Yared Lima e Sandriele Larissa da Silva Barbosa sob orientação do Prof. Dr. Rosivaldo Gomes. UNIFAP, 2018.

Na imagem, vemos Katniss oferecer-se como Tributo no lugar de sua irmã, Prim, enquanto ela é levada por guardas de branco.
Imagem retirada do filme The Hunger Games. Direção de Gary Ross. Lionsgate, EUA: 2012.

Introdução

Não é nenhuma novidade que, entre todos os papéis da literatura, um dos mais expressivos talvez seja o sociocultural. Através da literatura, é possível observar, anunciar e denunciar aspectos da sociedade e da cultura em que o autor vive, tendo este o intuito de mostrar aos que o leem sua visão sobre os acontecimentos. É possível, portanto, constatar que a literatura, além da fuga do mundo real, pode realizar um expressivo mecanismo de informação e reflexão sobre a realidade.

Ao observar o contexto do surgimento de governos totalitários no século XX, nota-se que situações de crise política e social levaram à ascensão de grupos políticos que promoviam discursos e ações pautados em ideologias patriotas exacerbadas, na escalação de um inimigo comum como causador das mazelas sofridas pela sociedade e no terror e na repressão como formas de coação social, para que a população se mantenha obediente aos comandos dos governantes. Nota-se que a obra Jogos Vorazes incorpora esses elementos para construir sua narrativa.

O enredo é ambientado em Panem, um grande país que se localiza no território onde fora a América do Norte. Após grandes desastres naturais, como terremotos e a subida do nível do mar, que tornaram a região território fragmentado, o que configurou uma crise social e política nunca antes vista, capaz de descentralizar o poder das autoridades. Com isso, houve o surgimento da Capital, uma metrópole que assumiu o governo sobre todo o território dividindo-o em Distritos, os quais tinham a função de produzir e fornecer para os cidadãos da Capital tudo o que precisassem, de matéria-prima a produtos processados em fábricas, em uma relação abusiva desde o começo. Inconformados, muitos habitantes deram início a uma revolução, que decorreu em uma guerra que foi perdida pelos rebeldes.

Como penalidade, a Capital instituiu que, anualmente, dois jovens de 12 a 18 anos, um rapaz e uma moça, fossem sorteados para participarem de uma competição em uma arena na qual deveriam lutar entre si até que só um restasse, enquanto tudo seria televisionado e assistido por toda nação, lembrando assim aos habitantes que eles não têm poder para subjugar a Capital, utilizando o terror para manter a ordem. Enquanto isso funciona como uma forma de manter os Distritos competindo entre si para que não se organizem novamente contra a metrópole, na Capital os Jogos são vistos como um grande espetáculo e fonte de diversão, uma vez que não são afetados por sua brutal natureza.

Portanto, iremos abordar, ao decorrer deste ensaio, de que forma a obra Jogos Vorazes espelha-se em governos totalitários, direta ou indiretamente, bem como se dão as relações de poder nos regimes em questão, fazendo ainda uma comparação com partes da obra em que acontecimentos semelhantes podem ser presenciados. O ensaio está organizado em três tópicos. No primeiro, discorreremos um pouco mais sobre o papel social da literatura, antes de darmos início às comparações, que serão feitas nos tópicos 2 e 3. Por fim, faremos uma breve conclusão sobre o tema, a fim de reforçar a ideia de que períodos extremos podem ainda hoje levar ao alçamento de ideais autoritários e à ascensão de governos antidemocráticos.

1 O papel social da literatura enquanto forma de expressão sobre a realidade

Seja Machado de Assis, veladamente escrevendo sobre a situação dos negros e das relações conjugais no Brasil Império, seja Clarice Lispector, explicitamente abordando a situação dos desfavorecidos e sem perspectiva de vida em nossa sociedade de meados do século XX, seja Suzanne Collins, de forma hiper-realista conjecturando sobre um contexto global e distópico sob um enredo que simula situações de totalitarismo governamental intensos, claramente há marcas de realidade que se posicionam nas obras, pois não se pode, jamais, desvincular da literatura o contexto em que a mesma surge, ou seja, do autor que é produto do meio sociocultural em que vive (Candido, 2006).

Dessa forma, compreende-se que por meio de Jogos Vorazes, Collins intenta denunciar o consumismo, a alienação e governos opressores através de uma visão que não se passa em locais ou durante acontecimentos reais, mas se espelham, indubitavelmente, em realidades sobre as quais a autora pôde aprender, refletindo-se em sua escrita o desejo de mostrar ao seu público alvo o que pode acontecer com uma sociedade que enfrenta momentos de crise política e social.

A escolha do referido tema pela autora estadunidense deu-se por ela observar em sua sociedade o fato de guerras e desentendimentos acontecerem em países em desenvolvimento, levando milhões à morte, ao mesmo tempo em que pessoas em países economicamente fortes e altamente industrializados assistem a isso na televisão e têm a possiblidade de trocar de canal rapidamente, podendo assistir a um reality show ou filme de entretenhimento sem comover-se por mais do que poucos segundos com a miséria recém-presenciada, absortos em sua segurança, de forma que acontecimentos em novelas podem gerar maior comoção do que o sofrimento humano real.

Essa indignação seletiva pode ser também observada em sociedades que passaram por regimes totalitários, em que a propaganda dos governos levava a população a apoiá-los por meio de uma ideologia, definindo um inimigo claro — e muitas vezes construído através de um concurso tendencioso e inflamado acerca de uma minoria ou grupo social ideologicamente contrário — como causador de todas as dificuldades enfrentadas durante crises, além do uso da repressão absoluta contra esses opositores escalados, que por sua vez criava um clima de tensão e terror sobre os cidadãos, desencorajando-os a seguir a o comportamento combatido pelo Estado.

2 Críticas presentes na obra: corrupção do Estado e desigualdades sociais

Assim como outras obras literárias ao longo dos séculos, Jogos Vorazes faz críticas incisivas a uma sociedade e a um governo fictícios, mas certamente alicerceados em instituições reais. A corrupção do Estado e a desigualdade social são grandes alvos das críticas feitas pela autora. Logo no início da história, a protagonista, Katniss, relata que a caça é ilegal onde vive, e que ela e seu amigo Gale eram passíveis de ser punidos com a morte pela prática. Além disso, existe um lugar onde se consegue vender livremente produtos ilegais, como aguardente e caça, evidenciando-se que o Estado não é eficaz em atender a todas as demandas da população, que se vê obrigada a sobreviver através de meios contrários à lei. Apesar de conhecerem as práticas ilegais, a polícia local e o prefeito não aplicam as punições prescritas pelo governo autoritário e até mesmo fazem parte das transações ilegais como compradores. Essa ação mostra como a corrupção do estado está enraizada no Distrito 12, onde a protagonista vive. Isso pode ser facilmente imaginado no mundo fora da ficção, onde a polícia e o poder executivo são facilmente corruptíveis, com diversos casos de desvio de dinheiro público anunciados pela mídia e através de investigações policiais.

Na obra, uma das passagens que mais marcam a desigualdade social é a em que Katniss vai até a casa do prefeito vender frutas colhidas na floresta próxima ao Distrito 12 e então é mostrado aos leitores como funciona o sistema de tésseras. As tésseras são uma cota de alimentos fornecidos como um auxílio aos cidadãos entre os 12 e 18 anos dos distritos, elegíveis, portanto, à Colheita para os Jogos. Cada jovem tem o direito de solicitar uma téssera para cada membro da família mensalmente, porém isso acarreta em mais uma ficha no sorteio da Colheita a cada cota solicitada. Meg, por ser filha do prefeito e, por isso, ter boas condições econômicas, tem seu nome menos vezes repetido nas fichas. Como consequência, isso cria um sentimento de segregação entre as classes sociais dentro do próprio Distrito, em que as pessoas mais pobres passam a ver os mais abastados financeiramente, em certa medida, como culpados da opressão que todos sofrem, enquanto na verdade são também vítimas do sistema autoritário, mas que por sua situação mais confortável, não se incomodam em promover uma mudança social. Isso configura uma alegoria aos privilégios que a elite tem sobre os menos favorecidos em nossa realidade.

3 O uso do terror e da repressão como formas de dominação

Na trama, o presidente Snow, líder da nação, utiliza os Jogos Vorazes para ressaltar à população sua impotência contra o governo. Além disso, os Jogos servem como uma maneira de alimentar rivalidade entre os distritos, para que se considerem inimigos e, assim, não consigam se organizar em rebelião, como a que há décadas motivou o surgimento dos Jogos como penalidade aos distritos. Essa foi uma estratégia bastante usada pelos europeus durante o Imperialismo, em que uma etnia local era eleita pelos colonizadores como líder de um determinado território, em detrimento de outra. Foi o que ocorreu durante a ocupação de Ruanda pela Bélgica, que instituiu uma das duas etnias que habitavam o território como governantes, favorecimento que causou instabilidade política e um grande genocídio no país, que perdurou por décadas. Similarmente, o Distrito vencedor de uma edição dos Jogos Vorazes recebe, durante o ano seguinte, uma porção extra de alimentos e doces como um prêmio à população por seu sacrifício.

Segundo Hannah Arendt (1949),

no corpo político do governo totalitário, o lugar das leis positivas é tomado pelo terror total, que se destina a converter em realidade a lei do movimento da história ou da natureza. […] Então o terror é a essência do domínio totalitário.

Assim, penalidades extremas são aplicadas ou prometidas à população, a fim de que não tenham coragem de se levantar contra o governo que os oprime.

E não apenas os Jogos Vorazes, mas todo o sistema de segregação é o que faz o terror vigorar. As pessoas dos diferentes Distritos não têm conhecimento sobre como os outros funcionam, visto que são proibidas de transitar entre eles. Como aconteceu durante o regime totalitário existente em Cuba e na União Soviética no geral, onde as pessoas eram privadas de informação e proibidas de se comunicarem com outros países, formando um clima de alteridade e desconfiança entre as populações.

Conclusão

Num contexto em que a tecnologia permite que cada vez mais rápido tenhamos informações de diversas fontes, é necessário que saibamos como filtrá-las. Do contrário, governantes, por meio da mídia e de notícias falsas ou tendenciosas, podem nos manipular e fazer com que acreditemos no que precisam para manterem seu poder e promover ações que cerceiam nossos direitos como cidadãos, sobretudo restringindo as minorias sociais levantadas como inimigos das ideologias conservadoras.

Por meio da literatura, é possível que reflitamos sobre nossa realidade, não apenas como autores, mas como leitores, como seres pensantes. É possível que tomemos consciência do que ocorre em nossa sociedade, e de como podemos solucionar os problemas de forma que todos se beneficiem, e não à custa da diminuição de direitos de outras classes ou grupos sociais.

Assim, unidos e conscientes, podemos evitar que Jogos Vorazes sejam transmitidos em nossas televisões, que apresentam mazelas e violência policial legitimadas pelo Estado nas periferias durante um jornal, mas logo transferem o foco reality shows milionários, sem promover a reflexão crítica ou explicações à população, uma vez que interessa mais vender a imagem de paz e segurança que não é a realidade do país, de que os problemas e a desigualdade social são condições inerentes à existência humana e que nada pode ser feito a respeito disso. Uma realidade construída por princípios e objetivos muito claros: o enriquecimento da elite e a manutenção do poder em mãos que não representam o povo.

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

COLLINS, Suzanne. Jogos Vorazes. Tradução: Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2008.

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Gabriel Yared

Jovem escritor, leitor e resenhista, amante da ficção. Tento apresentar, através de minhas palavras, o que vejo em conjunto ao que simulo em devaneios e sonhos.