Sextar-nos-emos: A Tríplice Mimese em memes de um Feudo Ocioso

Artigo apresentado à disciplina Literatura Portuguesa do Período Medieval, ministrada pelo Prof. Me. Marcos Paulo Torres Pereira em dezembro de 2019.

Gabriel Yared
11 min readDec 8, 2020
Imagem de capa da grupo do Facebook Fevdo Ocioso. Disponível em: https://www.facebook.com/PlebeusOciosos/photos/p.1756763684359209/1756763684359209. Acessado em: 8 dez. 2020.

Resumo: Valendo-se dos pressupostos de Dawkins (1976) sobre a ideia de meme como uma informação mínima que é repetida por uma sociedade como um gene e do conceito de Ricoeur acerca da tríplice mimese que permeia as performances e seus símbolos, este estudo tem por objetivo analisar de que forma o gênero textual meme do Facebook, conforme proposto pela página dessa mesma plataforma Memes Nobres para Plebeus Ociosos. Os memes produzidos por essa página, que exploram temas da atualidade através da estética artística e simulação dos costumes da sociedade medieval, exemplificam os processos dos dois autores citados, analisando os símbolos empregados e como eles se relacionam com o público alvo para que a mensagem seja compreendida, apontando finalmente para a popularidade que alcançam as publicações dessa página.

Palavras-chave: Tríplice mimese; Meme do Facebook; Medievalismo.

Resvmo: A valer-se dos pressvpostos de Dawkins (MCMLXXVI) sobre a ideia de meme como vma informação mínima que est repetida por vm fevdo como vm gene e do concepto de Ricoeur acerca da tríplice mimese qve permeya as performances e seus symbolus, est estvdo tem por objectivo analysar de qve forma o gênero textval ilvminura do Rostolivro, conforme proposto pelo fevdo desta mesma plataforma Memes Nobres para Plebevs Ociosos. As ilvuminuras prodvzidas por est fevdo, qve exploran themas da actualidad atravez da aesthética artística e simvlação dos sacros costvmes da sociedad medieval sem nvnca vtilizar-se da rvna maldita, exemplifican os processus dos doys avtores citados, a analysar os symbolus empregados e como eles se relacionan cvm o pvblico alvo para qve a mensagem seja comprehendida, a aponctar finalmente para a popvlaridad qve alcançan as prodvções dest fevdo.

Palavras-chave: Tríplice mimese; Ilvminura do Rostolivro; Medievalismo.

Sextar-nos-emos: A Tríplice Mimese em memes de um Feudo Ocioso

Um dos principais gêneros textuais de humor presente na internet nos dias de hoje são os memes do Facebook. Segundo Souza (2014), esse tipo de meme é um gênero que combina linguagem imagética e textual para fins humorísticos. A finalidade — e talvez uma das principais características — de um meme do Facebook é que, uma vez criado e postado — em publicações de páginas ou em comentários –, ele possa ser amplamente compartilhado e tornar-se viral, de forma que seja rapidamente (re)conhecido pelos usuários do suporte Facebook, que, por sua vez, têm a possibilidade de se apropriarem das informações contidas no meme para a criação de uma nova mensagem, com outra configuração.

Essas características se relacionam com o que foi apresentado por Richard Dawkins (1976) no livro “O gene egoísta”, em que definiu o meme como uma entidade que pode ser transmitida de um cérebro para o outro, sendo essa entidade uma ideia ou informação mínima a ser imitada e espalhada para outras mentes, de forma que, em um curto período de tempo, essa informação se torne de conhecimento geral, permeando todas as áreas da cultura, como a moda e a música, assim como o humor.

A concepção de que o meme se espalha organicamente pelos indivíduos não basta para explicar a receptibilidade que dos memes do Facebook têm, visto que eles não podem ser compreendidos simplesmente porque aparecem no feed de um usuário. Uma vez que um texto só pode ser entendido a partir de um contexto, os indivíduos que se encontram alheios a ele não têm a capacidade de compreendê-lo por completo, caracterizando o meme como um objeto performático.

O conceito de performance, segundo Schechner (apud CARVALHO, 2010), é tido como uma representação da vida cotidiana permeada por símbolos, por memórias construídas pelo imaginário através de séculos, incutidos na mente dos indivíduos inseridos em uma determinada sociedade que as aprendem através das interações sociais e da absorção da cultura e do conhecimento.

Segundo Ricoeur (1994, p. 60, apud CARVALHO, 2010), o símbolo é estritamente relacionado à memória que pode ser compartilhada e resgatada coletivamente. Assim, a performance só pode ser construída com um objetivo, através de símbolos conhecidos por uma sociedade ou, mais restritamente, uma comunidade. Dessa maneira, a performance — seja um ritual, uma peça teatral, um filme — é preparada de forma a atender a um determinado público, que, detentor do conhecimento prévio, entenderá e se identificará com o que está sendo representado.

Aliado a esses elementos, temos o conceito de mimese, que é o principal fator responsável pela recepção da performance, uma vez que é a representação da realidade através de algo que não é real, que é construído, encenado, preparado para ser apresentado a um público. A mimese, discutida por autores da Filosofia desde a antiguidade clássica, é o “tempero” para a arte, tornando-a concreta, reconhecível, passível de causar identificação ao que está sendo representado e ao público que a recebe, criando um laço entre as duas partes.

Ricoeur (1994, p. 70, apud CARVALHO, 2010) propõe um conceito inovador para a mimese, separando-a em três partes: a mimese I, que representa as características sociais do símbolo; a mimese II, que conta com a presença de um narrador para configurar o símbolo social em uma nova roupagem; e a mimese III, que está relacionada à receptividade do público em relação à narrativa proposta.

Assim, é necessário que diversos conhecimentos sejam resgatados para o entendimento de um meme do Facebook. Através da mobilização de conhecimentos históricos e temas da atualidade, unindo símbolos trazidos do medievo aos símbolos que estão ativamente presentes em nossa sociedade atual, a página do Facebook Memes Nobres para Plebeus Ociosos se utiliza desse suporte virtual para a postagem de textos multissemióticos com a finalidade de humor, alcançando, em novembro de 2019, mais de 240.000 curtidas, dado que aponta positivamente em relação à sua recepção pelo público.

Para demonstrar como essa mobilização de conhecimentos é feita através da tríplice mimese, faremos a análise de três memes publicados na página, considerando seus aspectos verbais escritos e imagéticos.

Imagem 1 — Meme sobre o fechamento dos portões do ENEM.

Fonte: Memes Nobres para Plebeus Ociosos. Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/PlebeusOciosos/photos/a.1760095780692666/2504750519560518/?type=3&theater. Acessado em: 9 dez. 2019.

A Imagem 1 apresenta duas personagens masculinas que lembram a estética de pinturas e iluminuras medievais, com a representação de figuras bidimensionais com torso e membros vistos de frente e rostos em perfil ou meio-perfil. Uma das personagens tem em mãos um documento, que, segundo a narrativa, representa sua inscrição para o conhecido Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

A combinação de recursos imagéticos e textuais forma uma narrativa bastante simples. A personagem à esquerda estende um papel a ser examinado pela personagem à direita, cuja expressão corporal demonstra contradição à intenção da primeira. Já o texto contribui para a narrativa apresentando uma situação bem conhecida pelo brasileiro: a grande quantidade de pessoas que são impedidas de realizar o ENEM por conta de atraso, o que se tornou uma temática recorrente para a produção de memes, atingindo cerca de 3.100.000 menções no Twitter, segundo o site de notícias G1 (2017).

Além disso, há uma reviravolta, responsável pelo tom humorístico do meme: a personagem que está atrasada propõe uma resolução engenhosa para seu problema, valendo-se de um recurso que não está presente na época em que a narrativa sugere se passar para justificar sua entrada.

Dessa forma, podemos identificar os símbolos através do quais a tríplice mimese se desenvolve. A mimese I está representada através de quatro símbolos: (i) a estética da imagem que remete ao medievo, (ii) a representação imagética e textual do item comprovante de inscrição, (iii) o conhecimento de que os portões dos locais de prova se fecham às 13h30 e (iv) a simulação de uma versão arcaica da língua portuguesa. Os símbolos (i) e (iv) se encarregam de criar a imersão na temática proposta pela página, enquanto os símbolos (ii) e (iii) são os responsáveis pela conexão entre o plano de fundo remetente a um tempo passado com temáticas presentes na contemporaneidade.

A mimese II se apresenta não através de um narrador explícito, mas de uma situação narrativa comum aos memes: a sequência de imagens, de forma que é possível identificar a progressão da narrativa de acordo com o sentido ocidental de leitura, e do texto que se apresenta em um diálogo.

Já a mimese III se dá de acordo com o resgate das informações expressas na mimese I, pois é necessário que o público mobilize os conhecimentos específicos sobre os horários do ENEM e da noção de que os relógios, tal como hoje os conhecemos, não existiam no período simulado na narrativa. Somente através desses conhecimentos, o leitor poderá se identificar e ser atingido pelo humor proposto no meme.

Prosseguindo com a análise, observemos o meme a seguir:

Imagem 2 — Meme sobre a Black Friday

Fonte: Memes Nobres para Plebeus Ociosos. Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/PlebeusOciosos/photos/a.1753729457995965/2558802714155298/?type=3&theater. Acessado em 9 dez. 2019.

Na Imagem 2, há um número maior de símbolos empregados para a construção da narrativa. Há a presença de três personagens: (i) um plebeu carregando sacos, e dois mascates, (ii) um sentado em uma cadeira segurando uma espada e (iii) outro atrás de um balcão com itens expostos à venda. Além disso, há a representação de (iv) um peixe (referenciado no meme como especiaria) e (v) de um animal que lembra um roedor (referenciado como capyvara). Além dos símbolos imagéticos, há novamente a presença de símbolos textuais verbais: (vi) a linguagem que simula o arcaísmo, (vii) a expressão sexta-feira negra e o uso de (viii) jargões humorísticos de venda, a notar “pela metade do dobro” e “leve 2 e pague 4”.

Dessa forma, os símbolos se inter-relacionam de diversas maneiras para construir a coesão do meme. A começar pelos símbolos que contextualizam o período histórico simulado, responsáveis pela mimese I, temos as próprias personagens (i), (ii) e (iii), aliados ao símbolo (vi), responsável por endossar a imersão. Em relação aos símbolos da atualidade, temos a expressão em (vii), referente à Black Friday, conhecida promoção anual que acontece no mês de novembro mundialmente, em que os preços de produtos de todos os tipos são baixados. No entanto, os símbolos (iv) e (v), que representam os produtos vendidos a preços provavelmente mais baixos, relacionados ao conhecimento expresso no símbolo (viii), remetem ao conhecimento de que é bastante comum deparar-se com a descoberta de fraudes durante essa promoção.

Novamente, a mimese II não se dá por meio de um narrador explícito, mas por meio de uma sequência narrativa estruturada. A mimese III, por sua vez dá-se a partir do conhecimento do leitor dos conhecimentos representados pelos símbolos (vii), (iv), (v) e (viii), que especialmente representam o humor da postagem, uma vez que, assim como um sujeito da Idade Média não tinha acesso à informação, muitos indivíduos da sociedade atual parecem permanecer alheios à iminência de golpes durante esse período, acabando no prejuízo ao julgar estar fazendo uma boa compra por falta de pesquisa.

Em seguida, tendo já analisado um meme de cunho anedótico e outro de temática mercadológica, passemos à última análise, que possui certo aspecto político:

Imagem 3 — Meme sobre Lula e Bolsonaro

Fonte: Memes Nobres para Plebeus Ociosos. Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/PlebeusOciosos/photos/a.1760095780692666/2546421225393447/?type=3&theater. Acessado em: 9 dez. 2019.

Para quem está familiarizado com o Facebook, é fato conhecido que a plataforma, além de oferecer espaço para o compartilhamento de fotos e vídeos de humor, pode ser também usada como meio de comunicação e propagação de notícias. Dessa forma, é muito comum que tópicos relacionados à atual política brasileira sejam discutidos em postagens e comentários.

Um dos principais assuntos comentados durante o primeiro mandato de Jair Messias Bolsonaro têm sido as decisões polêmicas tomadas pelo atual presidente. Num contexto de eleição promovida por ações em redes sociais, conforme aponta uma reportagem do site de notícias UOL (2018), Bolsonaro conquistou apoiadores no Facebook, que costumam defender suas decisões políticas de forma bastante acalorada e um tanto esquiva, uma vez que, ao serem questionados, muitos desviam o caminho da discussão para cobranças ao ex-presidente que governo durante os anos de 2003 a 2011, Luís Inácio “Lula” da Silva e que é integrante do Partido dos Trabalhadores (PT), além de ser um dos seus principais fundadores.

Como forma de crítica ao comportamento aos apoiadores de Bolsonaro, foi criado um meme em que, utilizando-se de uma cena da série japonesa Kamen Raider Den-O (2007–2008), em que um personagem se materializa e confronta o outro, questionando-o: “E o PT, hein? E o Lula?”. Dessa forma, o primeiro símbolo a ser discutido na análise desse meme surge a partir da a propriação da configuração de outro meme em um contexto diferente.

Imagem 4 — Screenshot do vídeo “E o PT, hein? E o Lula?”

Fonte: “E o PT hein? E o Lula?” Meme politico saiu de série japonesa. UOL. Disponível em: https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/redacao/2019/06/25/e-o-pt-hein-e-o-lula-meme-politico-saiu-de-serie-japonesa.htm. Acessado em: 9 dez. 2019.

Assim, o meme na Imagem 4 pode ser considerado o primeiro símbolo, uma vez que foi amplamente compartilhado na rede social, fazendo parte da mimese I. Também fazem parte dessa etapa da mimese, conforme podem ser observados na Imagem 3, as figuras personagens presentes, que são, assim como nos memes anteriores da mesma página, representações da arte do período medieval. Dispostas da mesma maneira que no meme original, há uma mulher ao fundo, e duas criaturas à frente, nas mesmas cores que os personagens do meme original apropriado, criando a correlação entre fantasia moderna da série japonesa e as criaturas da mentalidade de medievo.

Outro símbolo utilizado é o texto escrito, que combina a estrutura do primeiro meme utilizando-se de palavras comuns ao medievalismo. Relacionando o Partido dos Trabalhadores a uma guilda, que era uma associação de regulamentação das profissões do período, e o Kraken, figura mitológica nórdica que tinha o aspecto de uma Lula, ao ex-presidente, cria-se uma unidade narrativa que remete ao período simulado.

A mimese II é expressa num foco narrativo diferente dos dois outros memes analisados. Ao contrário dos primeiros, esta última apresenta um único quadro, e mais tem a função intertextual de remeter ao primeiro meme do que narrar uma situação possivelmente medieval. Por fim, a mimese III é percebida pelo público através do resgate de todos os símbolos já apresentados, desde a apropriação de outro meme, aos aspectos históricos e mitológicos até a identificação do paralelo com a realidade da política brasileira.

Assim, demonstra-se que os memes apresentados fazem concordância tanto com a ideia expressa por Dawkins sobre sua propagação quanto se relacionam a ideia de tríplice mimese por criarem narrativas verossímeis dentro de um contexto específico por meio do humor.

Dessa forma, a página Memes Nobres para Plebeus Ociosos cria a possibilidade de um paralelo entre o cotidiano atual e o medievo, separados por séculos, tratando das dificuldades sociais, políticas e humorísticas de cada época que se mostram, diversas vezes, muito parecidas. A identificação é promovida, portanto, através do uso de um conjunto de símbolos, de críticas ao funcionamento social, ao mercado, à política, que envolve o público nessa narrativa, criando a (tríplice) mimese proposta por Ricoeur, que, para além do que é expresso, preocupa-se com como atingir o público a quem possa interessar a mensagem.

Referências

CARVALHO, Carlos Alberto. A tríplice mimese de Paul Ricoeur como fundamento para o processo de mediação jornalística. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. PUC-Rio, 2010.

DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. Tradução de Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

INTERNAUTAS comparam preços e denunciam fraudes na Black Friday. Catraca Livre. Disponível em: https://catracalivre.com.br/economize/internautas-comparam-precos-e-denunciam-fraudes-na-black-friday/. Acessado em 9 dez. 2019.

MEMES Nobres para Plebeus Ociosos. Homepage. Facebook: PlebeusOciosos. Disponível em: https://www.facebook.com/PlebeusOciosos/. Acesso em: 6 dez. 2019.

MORENO, Ana Carolina. Enem 2017 foi o assunto de 4 milhões de posts no Twitter. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/enem/2017/noticia/enem-2017-foi-o-assunto-de-4-milhoes-de-posts-no-twitter.ghtml. Acessado em: 9 dez. 2019.

SOUZA, Humberto. Memes (?) do Facebook: reflexões sobre esse fenômeno de comunicação da cultura ciber. In: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/tematica. UFPB, 2014.

UM PRESIDENTE eleito pelas redes sociais. Congresso em foco. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/um-presidente-eleito-pelas-redes-sociais/. Acessado em: 9 dez. 2019.

--

--

Gabriel Yared

Jovem escritor, leitor e resenhista, amante da ficção. Tento apresentar, através de minhas palavras, o que vejo em conjunto ao que simulo em devaneios e sonhos.